Em 1962, Dias Gomes escreveu a peça Odorico, o Bem-Amado ou Os Mistérios do Amor e da Morte, que contava a história do emblemático Odorico Paraguaçu, um político corrupto, conquistador e hipócrita, porém repleto de carisma e com um discurso capaz de deixar pessoas de queixo caído pela eloqüência e confiança com que falava. Quarenta anos depois e a história remete aos dias de hoje? Sim, como se tivesse sido escrita em 2010.

Após duas famosas transposições para a televisão (uma novela em 1973 e uma minissérie com mesmo elenco exibida entre 1980 e 1984), O Bem-Amado – título reduzido em ambas as versões – se tornou uma das mais populares histórias de sátira e denúncia à corrupção política já feitas no Brasil.

Eis que, 26 anos depois da despedida na televisão, a história chega às telonas pelas mãos do competente diretor pernambucano Guel Arraes. Expert em histórias de humor e denúncia social, o diretor brasileiro já havia levado O Auto da Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro ao cinema com roteiro afiado e ritmo vertiginoso.

Com O Bem Amado, Arraes reconta, de forma atualizada, a história de Odorico (Marco Nanini, hilário), o político eleito da pacata cidade fictícia de Sucupira, na Bahia. As locações, entretanto, foram em Alagoas, no município de Marechal Deodoro.

Tendo como fiéis escudeiros o secretário Dirceu Borboleta (Matheus Nachtergaele) e as irmãs Dulcinéia (Andréa Beltrão), Dorotéia (Zezé Polessa) e Judicéia (Drica Moraes), Odorico precisa inaugurar sua primeira obra como novo prefeito: um cemitério. O problema é que não morre ninguém na cidade. Para solucionar o problema, ele conta com diversas artimanhas como, até mesmo, contratar o perigoso matador Zeca Diabo (José Wilker), assassino do seu predecessor.

Nesse ínterim, tem de lidar com o jornalista Vladimir de Castro (Tonico Pereira), que sabe da corrupção de seu governo e almeja tirá-lo do poder e assumir o posto de governante.

Com roteiro de Cláudio Paiva e Arraes, responsáveis por sucessos do humor como TV Pirata e A Grande Família, o filme mantém a época (os anos 60) e traça um panorama sarcástico da corrupção política entre a fictícia Sucupira e o Brasil prestes a cair na época do Regime Militar.

As estratégias de Odorico para conseguir que um morto na cidade solidifique sua glória como prefeito trazem a marca inconfundível de Arraes, cujos filmes contém o diálogo dinâmico, o ritmo rápido entremeado de cortes e a ótima edição, que fazem com que o filme não perca o ritmo da narrativa. E o político tem nas engraçadas irmãs Cajazeiras três mulheres que sonham em ser a primeira dama da cidade, seja na romântica Dulcinéia, na resguardada Dorotéia ou na espevitada Judicéia, a libidinosa, alcoólatra e mais nova do trio.

Com os neologismos do seu inigualável vocabulário, Odorico não fala, discursa. É o típico político que faz uso das palavras para conquistar a todos, sem exceção. E cria expressões enfeitadas para impressionar, como “mal-caratistas”, “emboramente”, “construimento” e “sigilento”. Quem não entende, claro, fica boquiaberto com a “inteligência” do prefeito. E ele ganha fama e inimigos no caminhar da carruagem.

Além disso, o filme traz outros personagens curiosos, como o bêbado Chico Moleza (Edmilson Barros) e o cético jornalista Neco (Caio Blat) que se apaixona pela doce e ousada Violeta (Maria Flor), filha de Odorico que estuda na capital. Neco e Violeta representam, inclusive, a juventude que, mesmo com a revolução sexual e cultural da época, não deixam o cunho político de lado.

A ideia não chega a ser aprofundada e mostra o povo de Sucupira por meio do bêbado Molenga, único que não é próximo de Odorico, ou seja, uma referência ao povo submisso, volátil e enganado, já que se torna o coveiro do cemitério e nunca recebe seu salário.

José Wilker, que tem curta participação como o temido Zeca Diabo, mostra um personagem sombrio, de voz imponente, olhar fixo mas, ao mesmo tempo, o herói que o povo precisa para fazer a justiça necessária que povo, forças armadas e políticos despreparados são incapazes de prover.

O final pode surpreender aos que não conhecem o desfecho dado por Dias Gomes à história. O Bem-Amado fala de um personagem brasileiro emblemático que, como político, foi destruído pelo povo; e, como ser humano, foi destruído pelas pessoas próximas a ele. Pena que Odorico Paraguaçu represente muitos políticos, mas seu destino seja diferente daqueles que governam na vida real.

PS: texto publicado, originalmente, no Portal Terra: http://cinema.terra.com.br/interna/0,,OI4578062-EI1176,00-Com+humor+e+critica+a+politica+O+BemAmado+chega+aos+cinemas.html